Tercer volumen del "Livro das Quedas" de Casimiro de Brito


El tercer volúmen de la ahora trilogía "Livro das Quedas" de Casimiro de Brito, (de cuya primera entrega dimos detallada cuenta en un artículo publicado en La Náusea en marzo de 2010), se presentó el pasado 21 de junio, y la edición ya se ha agotado, por lo que actualmente se está procediendo a la segunda edición de este magínifo poemario AMAR A VIDA INTEIRA.


ALGUNOS POEMAS DE
AMAR A VIDA INTEIRA
traducción de Montserrat Gibert


38

Del amor, de su página en blanco,
siempre viví, unas veces de la luz
que de él emana, y tanto me cegó,
otras veces de las penas oscuras
que después amanecen
y hasta canté.
Cayendo y cantando voy muriendo,
en arco voy cayendo tan despacio
como puedo: hay un fuego que me consume
y sólo en ti me pierdo y sólo ella,
la página blanca del amor,
me salva.



39

Esta cosa a la que llaman amor
es un niño que salta donde soy viejo,
yo que vengo de milenios viajando
de reino en reino. Polvo
intenso.
Salto y bailo y soy contaminado
por aguas montañosas que mantienen para siempre
el río febril. Los árboles, en la orilla,
dóblanse a su paso.
Puedo llamarlo amor,
pensar en la luz cruda del nacimiento o simplemente
nacer de nuevo sin desear
cosa alguna. Pensar es ejercicio de palabras
y hay momentos en que sólo el silencio
o el sexo en el sexo
o un grito
dicen lo que se quiere decir.

Heraclito. Platão.



mandei para Montse, antonio Rey,
leila

Um sopro, um rio…
(Amar a Vida Inteira, de Casimiro de Brito)*

     Há um provérbio africano que diz: «Cada fio de água tem o seu caminho». Há muitos fios de água neste novo livro de Casimiro de Brito, e muitos leitos por onde essas águas correm. A água, as águas que correm pelos rios e as fontes do corpo são, de facto, a grande isotopia, a mais evidente linha imagética que atravessa o livro, mais uma paragem, um açude para onde convergem as águas de cem poemas na torrente d’O Livro das Quedas, que nasceu no dia 11 de Maio de 1996 (como se lê na p. 127).
     O Livro das Quedas de Casimiro de Brito, um livro em expansão e um delta de muitos braços, começa, no primeiro volume, como uma ars moriendi: «Um homem | vai no seu corpo | e subitamente | cai…»: o homem, o corpo, a queda, balizam o curso intermitente da vida e das suas mortes. Este terceiro volume abre com os versos:
Quem toca na espuma
mergulha no mar.
Assim comecei a amar-te.
     O gesto dominante será agora o do mergulho, afundamento, e a imagem condutora a do corpo fluído, mutante, líquido. Estamos perante uma ars amandi, que tenho, no entanto, alguma dificuldade em ver ou ler apenas como tal – porque o livro, onde a palavra «amar» é o húmus existencial de onde nasce cada poema, coloca uma questão sem resposta: o que é «Esta coisa a que chamam amor?» (poema 39); qual o seu lugar na geografia e na geometria dos corpos? Prefiro dizer, provisoriamente: este livro é acima de tudo um teatro de Eros, a arena de corpos vivos que experimentam quotidianamente o júbilo e a morte. De facto, este não é mais um livro de poesia de amor, ou de «poesia erótica» (termo também ele gasto, mas difícil de evitar) – é um dos mais intensos breviários do amor e da morte que se podem ler entre nós, um fragmento luminoso e sombrio, animado do princípio ao fim por um duplo sopro: o sopro que levanta o (que somos, e a poesia de Casimiro de Brito desde sempre nos vem lembrar), e o sopro que traz as palavras (e também deste outro sopro há um saber antigo nesta poesia da palavra plena).
     A este duplo sopro, que é de sempre («o sopro antigo que em mim habita», diz o poema 33), vem agora acrescentar-se, com uma presença tão obsessiva neste livro que é impossível não se dar por ela à primeira leitura, o topos da experiência erótica como um rio sem fim, sempre o mesmo e sempre outro. Não é a velha imagem de Heraclito, ou é ela ainda e sempre, mas invertida, o que neste livro nos é dado ler: banhamo-nos sempre no mesmo rio dos corpos, mas fazemo-lo sempre de modos diferentes, porque múltipla, infinita, é a experiência por que aí se passa. Se n’ O Livro das Quedas o poeta se senta «numa pedra / que me ensina / a arte da queda», agora percorrem-se todas as margens e fundos desse rio, por vezes mar, outras lago, outras fonte, sempre um espelho ou um fio de água onde está escrita uma arte de amar. Ovídio abre a sua Ars Amandi com uma advertência ao leitor, dizendo que, se este não sabe o que é essa arte, que leia o livro e ficará a saber. Não é o que acontece aqui: esse terceiro excluído sempre incluído que é o leitor não é convocado para o encontro, que é sempre só de dois corpos que se respondem, como nos dísticos antigos, a forma por excelência da elegia.
     Voltarei às elegias antigas. Por agora, continuo a seguir o trilho dos fios de água e dos muitos campos semânticos desse território que preenche grande parte do espaço lexical deste livro. Seguindo por aí, chega-se ao âmago e à totalidade deste novo conjunto de poemas arrancados ao Livro das Quedas, e em que a queda se torna fluída e a própria pedra se liquefaz:
Água iluminada. Umas vezes um lago
onde me debruço, e fico a vê-lo cintilar
dentro de ti – outras vezes
lava derramada na pedra
em desejo convertida. Toco-te,
abre-se a vida. Água por onde caminho
e me perco…
(poema 32).
     Mas vamos tentando chegar mais perto da essência deste livro de essências e do essencial. Para isso, preciso de me libertar das definições. Volto às perguntas de há pouco: poesia de amor? erótica? Volto a esquecer as etiquetas; desta vez preferiria qualquer coisa como: uma metafísica materialista do amor e do sexo. Mais fácil ainda seria dizer que aquilo que aqui fala (e as muitas remissões intertextuais, entre Antigos e modernos, poderiam confirmar) é a velha tradição do Eros–Tanatos, que alguns poemas verbalizam e confirmam («o amor que fazemos é único / e a morte que nos envolve antecipa / o sopro da terra escura»: poema 30). Também é disso que se trata, claro, mas há mais. Há um movimento sem fim, insistente, obsessivo, que faz nascer nestas páginas uma poesia da errância, da errância do corpo, da errância através dos corpos. Passando e bebendo das fontes do caminho. Repetindo o caminho por atalhos diversos, num monólogo contínuo que tem por pano de fundo o desejo (e o seu tempo intenso, que é o do instante, o kairós grego) e o tempo (com o seu desejo de se tornar eternidade, aion) – o desejo que faz brotar a escrita, o tempo (e muitas vezes a distância) que sabiamente a molda e apura, transmutando-a em fala última desse desejo que atravessa os corpos. Mais uma vez: poesia de amor? Dificilmente. Prefiro lê-la agora como expressão da pura energia que circula na pele e passa para os diferentes ritmos da linguagem daquele desejo (aqui sempre o Eros, não a ágape dos Antigos, uma forma de amor mais domesticado), sempre com as duas faces do jogo do amor e da morte: luz e sombra, água e pó.
     A epígrafe escolhida pelo autor, da Antígona de Sófocles, deixa isto claro: embora o título fale de «amar», é de vida e morte, de «viver a morte» que se trata. O próprio título se abre a uma dupla leitura (e ambas vão com a poesia de Casimiro de Brito): 1. amar toda a vida, num abraço que não deixa resto; e 2. amar durante toda a vida, numa dádiva e numa busca que aspiram à realização do «amor completo» pela via de sentido (quase) único dos sentidos – do corpo, mas com uma «alma», pagã, sempre a aflorar.
     Depois, quando se começa a ler, entra-se num universo poético reconhecível, em que as remissões para poetas clássicos são provavelmente o que menos conta para que se possa dizer que o autor deste livro se tornou, se foi tornando ele mesmo um clássico – um caso clássico da poesia portuguesa do erotismo, nas referências identificáveis, sim, mas também na temática universal de um Eu que não abdica da singularidade de cada experiência, na dicção quase classicizante, na postura (poética) face ao que ainda temos de designar de «amor», entre um materialismo antigo (arcaico, só physis, corpo, por vezes com a violência que lhe é intrínseca) e vagos restos de um «neoplatonismo» que, não sendo imitação e uma «maneira» (camoniana, maneirista, clássica), resulta numa consciência aguda, mas serena, da transitoriedade, da permanente iminência da queda, do desejo expresso do silêncio que prefigura a eternidade no acto efémero e repetível do prazer. Assim:
Não digas nada, se acaso te resta
algum sabor nas bocas mais íntimas
do corpo. Deixa-me respirar
a flor efémera que nada sabe
do seu mistério.
(poema 2).
     Neste jogo que Casimiro de Brito sempre jogou na sua poesia, entre a vivência jubilosa da vida e a leitura silenciosa (e «osmótica») de poetas clássicos de sua eleição, o caminho parece-me levá-lo neste livro (e já noutros) até aos antigos cultores da elegia (o triunvirato Propércio, Catulo e Tibulo) e a uma atmosfera e uma postura frente ao mundo próximas da ataraxia estóica, própria de quem já tudo viveu e quer continuar a viver. Mas também essa elegia antiga, que aqui ecoa sem que haja referências explícitas a ela, que se move entre a indiferença criadora do sábio e o furor passional do amante que vive o desvario, não é simples poesia da nostalgia da realização ou do locus amoenus, que associamos hoje mais facilmente à elegia. Na sua forma tensa – como sugeri antes –, a do dístico, do verso vazado nessa forma do abraço efémero, ela é sobretudo o poema do amor sem ilusão, da vivência intensa e sempre adiada da plenitude, da Morte que assoma na esquina de cada verso do dístico elegíaco – ou do poema, agora não espraiado no verso longo, mas erecto, na verticalidade do eixo que é desde há algum tempo o da imagem gráfica da poesia de Casimiro de Brito.
     A elegia antiga tem ainda muito de jogo. Aqui, o que faz nascer o poema em rio vertical contínuo, numa pulsão libidinal que se transforma em ímpeto de escrita, é a grande nostalgia do desaparecimento, do afundamento no outro, da fusão impossível (não há relação sexual, como disse já Lacan), numa voragem e numa vertigem explicitadamente «canibalescas» – voragem de um «amor-canibal», vertigem de um canibalismo metabólico que devora e assimila o outro –, a vertente mais obscuramente animal do amor, que conhecemos sob o nome de sexo, simplesmente.
     E tudo isto passa para a vibração forte dos veios da palavra desavinda, para o excesso da imagem, ou também para os ecos vagarosos e ritmados que escorrem de alguns versos. Há nestes cem poemas (ou sequências) uma respiração intranquila, funda, lenta, arfante, as mais das vezes intensa, que marca o ritmo de um longo percurso entre o viver e o escrever. E a certa altura a respiração suspende-se, volta atrás, retoma versos já ouvidos, introduz variações nos temas, nas teclas já tocadas, gerando uma orquestração do eterno retorno do desejo e das suas pequenas mortes sempre repetidas.
     À força nua da imagem vem juntar-se a voz que diz: faço, fiz, bebi, despi-te… No ponto onde as duas se cruzam – no poema – incendeia-se a linguagem, deixa para trás a experiência que parece ser sempre só um eco que fica a vibrar. Revive o que estava extinto – melhor, em latência, à espera do seu corpo de palavras. E elas vêm, em catadupa, torrenciais na estrada do poema, ao longo das águas desse rio da memória palpável do corpo, que desagua noutros tantos mares que acolhem a mão que escreve.
     A mão que escreve o amor que lê, que se lê, como nos murmura o poema 85: «Amar semelhante a ler». Amor sive legens, diria também Gabriela Llansol com seu mestre Spinoza, para quem corpo e alma se não separam, e a morte não existe. É com a morte que quero concluir, sem propriamente chegar ao fim, que fim não há. Com aquela morte, diz um verso, que traz em si um «fulgor» (poema 24), aquela que «vai cavando lentamente no meu corpo / uma fenda, uma vibração feliz» (poema 65). Porque é sempre também de morte(s) que se trata quando falamos do desejo, esse animal cujos espaços, mais do que os da vida, são os do anúncio da morte, de sucessivas e repetidas mortes que trazem repetidas ressurreições. «Imóvel e em parte alguma, instável e em toda a parte» (assim o defini um dia), o arco do tempo anula-se nele e ganha a sua mais extrema concentração na escrita. Na de Casimiro de Brito, a morte é, sempre foi, interlocutora familiar, a sua inevitabilidade despe-a de negatividade. A Morte é presença serena e certa de um «ofício de duração» (poema 7), o tempo suspenso que sustenta cada passo dado – e cada queda. O prazer é uma imitação (Casimiro de Brito sabe-o desde há muito, cf. Imitação do Prazer, ficção, 1977), e a Morte a única certeza, a grande companheira e, paradoxo dos paradoxos, renasce neste livro como uma «vibração feliz» (poema 12), depois de já ter sido, precisamente com o amor, um «vício» (na antologia pessoal O Amor, a Morte e Outros Vícios, de 1999), ou, em si mesma, objecto de «negação» (Negação da Morte, poesia, 1974). Daí o motivo recorrente da queda e o seu sentido neste livro sem fim: aqui, como no paraíso perdido, queda não significa morte ou fim, mas recomeço, a verdadeira entrada no mundo do vivo, do que há de mais humano. Ou, como já escrevi antes a propósito do primeiro volume deste ciclo sem fim, é «uma queda que é um recomeço que é uma queda. Movimento de instante fundador a instante fundador. E de um a outro vai o tempo de uma aprendizagem do esquecimento, para que algo de novo seja criado». Volto a lembrá-lo agora: é um saber antigo, e cada vez mais raro, este de cair para se reerguer, como caem os versos nos sulcos do poema, ou as sementes nos da terra, como acontecem (a etimologia é a mesma, a de cair e de acontecer) o amor, as mortes dos dias e outros vícios neste «ofício de alta voltagem» (poema 92) em que se faz desde há muito a poesia de Casimiro de Brito.


*  Lisboa, Roma Editora, 2011.

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